Ninguém tem sido mais
martirizado na história do que os que afirmam ser Jesus Cristo seu SENHOR e
Salvador, em especial nos primeiros quatro séculos e meio da história do
cristianismo. Policarpo, em 156 AD, com 86 anos de idade, foi martirizado por
não reconhecer a divindade de Nero, e não recantar a sua fé e declaração da
divindade de Jesus, o seu verdadeiro Kyrios.
Perante os seus algozes, Policarpo afirmou: “durante 86 anos eu O servi e Ele
nunca me fez algum mal, como posso blasfemar o meu Rei, que me salvou?...vocês
me ameaçam com um fogo que arderá por uma hora, e um pouco de tempo depois se
apaga, mas vós sois ignorantes do fogo do julgamento que vem com punição
eterna…fazei o que desejais”. Vivia-se e morria-se por Cristo com consciência e
entrega total, sem medo e com uma ousadia que fez do cristianismo a força
avassaladora que ainda hoje conquista o mundo e nele se espalha.
“Jesus (é) SENHOR” tem
sido a confissão de fé mais usada através dos séculos, mas não é uma mera
declaração de afirmação superficial, nem pode ser, pois implica algo de supremo
valor e verdade. Não é um moto, um tema ou uma declaração como tantas outras. É
uma profissão de fé real que existe na pessoa que a professa. Era uma exclamação
confessional usada nos cultos primitivos, uma marca proposital na confissão dos
primeiros cristãos. Ainda hoje o é.
SENHOR é um título que
vem do uso do termo Kyrios, do grego,
e que tem vários significados, mas todos eles ligados a uma forma de senhorio e
que era usado sempre com uma distinção peculiar, pois aproximava a mente humana
à compreensão do que era ser divino. Na sua aplicação mais comum, o termo era
usado por altura do século 1 a.C., como designando ou representando a ideia de
comandante, governante, dono, empregador ou senhor, tal como a LXX usa. Mas no
NT, o termo, sendo usado 717 vezes, (das quais 210 só em Lucas e 275 por Paulo
nas suas epístolas), designa, em relação a Cristo, uma expressão cortês, a
confirmação de aceitação de sua liderança, afirmando a disposição de O seguir e
obedecer, de tê-lo não só como o Kyrios
do sábado, mas do mundo, no seu todo. É tê-lo como soberano pessoal e de toda a
criação. As suas palavras e ações tinham o selo da autoridade, do poder e
soberania no que estava a ocorrer e que continua para lá da sua ressurreição.
É neste sentido, por
exemplo, que o imperador Augusto foi intitulado Theos kaí Kyrios, Deus e Senhor e, até no Alto Egipto, a rainha
Candace, de Atos 8:27, tinha o título de hē
kyria Basilissa, Senhora e Rainha, atribuindo a si, poder, soberania e
controlo que se aproximava a uma qualidade divina, já que de natureza não o
eram. Da mesma forma, Herodes e Agripa usavam esse título. Assim, este termo, à
época de Jesus, tinha já esse sentido de soberania, poder e autoridade
supremos. E, estando os destinos de tudo e de todos nas mãos deles, lhes
atribuíam qualidade divina que não podia ser refutada. Os imperadores Romanos
desta época, não só queriam o reconhecimento do título, mas exigiam culto à sua
pessoa, agora sim, já tida por divina. Ali havia uma intenção bem clara: que
lhes fossem atribuídas características e natureza divinas, poder absoluto,
inquestionável. Queriam ser adorados pelos povos e que as nações os tivessem
como “deuses”.
O conceito de Kyrios, na perspetiva histórica, combina
dois elementos: o de poder e o de autoridade e, na união destes dois podemos
claramente entender que se pretende afirmar a autoridade absoluta de Jesus,
como Deus incarnado. É nesta qualidade que Jesus é o soberano dos Kosmokrator de Efésios 6:12, é elevado a
criador, à posição de Kyrios
universal e é o Kyrios exaltado de
Rom 14:9, Senhor de mortos e de vivos. Finalmente esta exaltação leva a que
seja chamado Rei dos reis e Senhor dos senhores.
Numa aproximação mais
prática e pessoal, ter Cristo como SENHOR da vida, implica não somente o
reconhecimento do seu papel único e singular, na salvação individual, exclusiva
diria, mas ter uma entrega incondicional e completa a este SENHOR, Jesus. Ser dele
e de mais ninguém. Na África, por exemplo por questões de contexto, eu usava
para os meus alunos o termo “patrão” para lhes explicar o que Kyrios designava e, deste modo eles
entendiam de forma mais clara o sentido maior do termo. Às vezes acrescentado
de mais dois termos, “dono” e “proprietário”, sem usar muito o termo senhor,
pela banalização que tal termo possuía ali. Era importante que entendessem bem
o exclusivo senhorio de Jesus sobre suas vidas.
Ninguém, pessoa, ou
instituição, se pode colocar como agente, gerente ou intermediário dele. Ele
age pessoalmente e quer resposta pessoal. Não é a salvação e Senhorio de Cristo
algo que precise de intermediários, nem humanos, nem celestiais. Da mesma forma
que o Shemá israelita afirmava “ouve
ó Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Dt 6:4), também Jesus de si
mesmo afirma “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6), e “ninguém vai
ao Pai senão por mim”.
É por tudo isto que não
podemos ficar satisfeitos usando somente, em relação a Jesus Cristo, o título
de “Salvador”, sem lhe acrescentar “Senhor”. É fácil ver-se em tantos lugares
no Novo Testamento, o uso da expressão “nosso SENHOR Jesus Cristo”. Numa
análise cuidada do uso desta expressão podemos ver facilmente que ali se afirma
a divindade de Jesus, uma outra forma de o entender como o Emanuel, Deus conosco, afirmando esta divindade como, por exemplo,
se vê em Mateus o uso intercambiado de Kyrios,
tanto em relação a Deus Pai como a Jesus Cristo. Se juntar as declarações de
Jesus, em João, afirmando Ele e o Pai serem um (Jo 10:30), além de inúmeras
outras, ao que está exposto acima, então o Senhorio de Cristo sobre as nossas
vidas é fundamental na fé e na vida. Quando Paulo afirma “vivo, não mais eu,
mas Cristo vive em mim…” é retratada a rendição completa do eu a Cristo. É-se
dele, num todo holístico, numa entrega sem reservas, deixando até que a
personalidade sofra mudanças, as quais são essenciais para que o próprio
carácter de Cristo seja evidenciado no crente, demonstrando ao mundo o que este
SENHOR Jesus faz na sua vida. O Senhorio de Cristo deixa de ser, assim, algo
impalpável e desejável, mas passa a ser expressão concreta ao mundo que o
cerca.
Neste entendimento, o
cristianismo é, sim, uma religião única, onde Deus nos busca, homens perdidos,
entregando o seu Filho Jesus, o nosso Kyrios,
para nossa redenção.
Eduardo de Melo